sábado, 24 de abril de 2010

"UM HOMEM CÉLEBRE" - Machado de Assis

análise:

No conto acima referido encontramos, pelas mãos geniais de Machado de Assis, a narrativa de uma experiência humana e de uma realidade íntima que é observada através das pertubações psicilógicas da personagem principal, Pestana, que se amargura de não conseguir produzir uma obra musical nos moldes clássicos, pois só consegue desenvolver músicas populares - as denominadas “polcas” -, e que estas não lhe trazem um prazer completo, fazendo dele um homem infeliz e desolado quanto ao seu dom artístico, e, desgostoso consigo mesmo, ele vive a vida numa enorme peteca entre a ambição e a vocação.

Esta “vocação” traz ao personagem reconhecimento público de suas obras e o leva tocar piano em saraus e bailes, e neles se vê obrigado a executar suas “odiosas” composições de apelo popular, que merecidamente o tornam “célebre”, já que de fato eram boas segundo ao gênero a que pertenciam. Ao andar pelas ruas, Pestana ouve suas obras sendo reproduzidas no interior de casas “modestas” e até mesmo sendo “assobiadas” por pedrestes; ao invés de se vangloriar e ter satisfação por ter sido o autor daquelas notas, o personagem sente-se “desesperado”, como se a sua própria atividade criadora (ou o produto dela) e meio de vida se voltasse contra ele, o criador, e o fizesse imergir em um estado de existência angustiante, e levando-o a ver a triste e dolorosa realidade da condição humana, que é de ser impotente em relação às limitações interiores que se desenvolvem em seu espírito, transformando, assim como Pestana, em um ser escravo de suas qualidades não desejadas, e que terá sua passagem pelo mundo registrada de uma forma não plenamente representativa quanto à sua multiplicidade psicológica, mas sim de um modelo que de fato o representa não em sua totalidade, posto que não foi possível a este ser exteriorizar suas íntimas sensações de alma e seus profundos, e ambiciosos no caso de Pestana, desejos particulares que iriam lhe trazer grande felicidade em vida, deixando assim no mundo um rastro de existência que expressa apenas um lado do ser humano que existiu, lado legítimo, porém relativo, dependendo do ponto de vista observado.

Esta ambiguidade que toma conta de Pestana, em ser aquilo que os outros veem e não o que está dentro de si, ora é clara e objetiva, mostrando ambos os lados de forma distinta, e outrora é mesclada uma à outra e desaparecendo, aparentemente, a dualidade, como na passagem: Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de cantarolar baixinho,...; e logo adiante o narrador continua a dizendo que Pestana “não desgostou” de ouvir uma de suas polcas “assobiada por um vulto” na rua do Aterrado onde morava, um fato incompreensível, já que no início do conto, com já dito antes, após Pestana sair de um “sarau íntimo” na casa da viúva Camargo, tem-se uma passagem semelhante à descrita acima, porém de reações diferentes, onde Pestana ao chegar na Rua do Aterrado ouve também uma polca sua sendo assobiada por dois homens, e Pestana ao ouvir tal fato entra “desesperado” em casa, como que fugindo daquela melodia composta por ele mesmo. Esta atitude de “desespero” é mais compreensível e melhor assimilada dentro da narrativa como um todo, enquanto que a outra: de “cantarolar baixinho” a sua polca recém-criada, demonstra ser apenas um pequeno traço psicológico de compreensão e satisfação em relação às suas expressivas virtudes, mas, no entanto, como diz a narrativa: essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua.

O “célebre” Pestana passa noites em claro rodeado de quadros de compositores clássicos tais como Mozart, Bach, Beethoven, Schumann, entre outros - um grau expressivo de intelectualidade da narrativa feita em 3ª pessoa -, tentando em vão compor obras semelhantes aos grandes gênios, mesmo que “fosse apenas uma página”, mas tristemente seu esforço, suas hábeis mãos só conseguem produzir “músicas fáceis”. O personagem chega a ter uma ideia de que a incapacidade de compor músicas clássicas devia-se ao fato dele não estar casado, e por ser solteiro e de vida despreocupada ele somente poderia produzir obras de qualidade inferior, como se a genialidade dependesse de alguma posição social (ou estado civil) ou que esta fosse condição necessária para se produzir obras sérias, possivelmente uma crítica de Machado à sociedade sistemática e de cegas tradições do século XIX, sociedade esta que se perpetua em vários pontos até os atuais anos do século XXI. Pestana passa por um vislumbre de alegria ao pensar ter composto um “noturno”, porém sua mulher, também artista da música, o faz ver que estava enganado: a música não era sua, original, mas sim um trecho de uma obra de Chopin, a qual Pestana achara em algum daqueles becos escuros da memória e involuntariamente a copiara.

Em termos físicos, a narrativa se desenvolve num período cronológico amplo, apesar de não narrar ano-a-ano os acontecimentos, o narrador abrange uma década da vida de Pestana, iniciando o conto no fim de 1875 e finalizando-o com a morte do personagem em 1885. O grupo de personagens é reduzido, e os poucos que são citados somente pode ter maior relevância o editor das polcas, que surge como mediador em relação ao desenvolvimento artístico não apreciado por Pestana e também como um aproveitador, que só se interessa em publicar as polcas por elas fazerem sucesso junto ao público.

De volta à narrativa de Pestana, o casamento deste durou pouco, em torno de um ano, e como visto anteriormente, não produziu o efeito esperado, que era o de amadurecimento e “inspiração” por parte do músico de polcas; o matrimônbio teve fim ao morrer Maria, sua esposa, vítima de uma tuberculose pulmonar, já estava tísica antes de casar, deixando Pestana novamente mergulhado no abismo entre sua “ambição” e sua “vocação”. Chegou a tentar produzir um Requiem em homenagem à esposa mas não conseguiu. Após um tempo de recesso, estabelece contrato com o editor para a produção de novas polcas, e assim continua a viver, sem outra alternativa em termos financeiros (as aulas que ministrava eram insuficientes), a apartir de sua (des)prestigiada vocação musical.

Alguns leitores, talvez os mais românticos, possam esperar que no final do conto, a personagem principal finalmente consiga realizar seu sonho, mesmo que nos últimos momentos de sua vida, porém isto não ocorre, talvez pelo fato de ser escrito por um escritor realista e como tal sua intenção era dar originalidade ao texto, inventado uma história que pudesse transmitir não a fantasia do Romantismo mas uma transcrição particular da realidade mundana, onde os seres humanos possuem uma alma complexa e dividida em partes indissolúveis e por vezes incompatíveis, fazendo deles espectros físicos, apartir, não do que se é interiormente, mas representando apenas aquilo que se é enxergado pelos outros; ou seja, uma realidade íntima e característica dos homens de todas as épocas, que é necessário que se trate dela, como disse o próprio Machado de Assis: para que a realidade do cotidiano não se perca. E para Machado nada é perdido.

***(L.F.Rovi-2006)***

BIBLIOGRAFIA:

ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos. Klick Editora: São Paulo, 1997.

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