sábado, 24 de abril de 2010

"MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS" - Manuel Antônio de Almeida

análise (trecho):

Quando Napoleão Bonaparte (1792-1821) invadiu Portugal em 1808, D.João VI se viu obrigado a embarcar com sua família para a capital de sua Colônia, o Rio de Janeiro, transformando-a em sede do governo monárquico, a Corte. Esta ocorrência provocou uma série de mudanças na cidade, pois não só a aristocracia real se fixou no Rio como também vários segmentos da sociedade portuguesa que ao se misturarem com os que lá estavam povoaram as ruas do centro com suas diversas atividades e ocupações. As partes mais representativas desta sociedade eram: o funcionário público, o militar, o comerciante, o homem de imprensa; e tendo à margem deste grupo dominante a grande massa popular composta de variados tipos: ciganos, barbeiros, sacristãos, escravos, e uma infinidade de gente desocupada que vivia sua vida pacatamente e driblavam as dificuldades muitas vezes sem atitudes corretas, no entanto de maneira jeitosa e quase discreta.

É esta classe “marginalizada” da sociedade representada por um povo que vive a partir do necessário (ás vezes insuficiente), que encontramos nas páginas do romance peculiar de Manuel Antônio de Almeida, sendo a obra vista como um caso a parte dentro da classificação literária, apesar de estar cronologicamente inserida no Romantismo não é um livro romântico, e realista não chega a ser em sua totalidade, porque ao longo da narrativa pouco se encontra de detalhes profundos na caracterização das personagens, de seus sentimentos ou de seu pensamento, não há minúcias, mas sim um “contar de história” coloquial e desenvolvido por uma linguagem popular e objetiva.

O livro tem seu último capítulo publicado em 31 de Julho de 1853, no jornal Correio Mercantil, no entanto o autor retrocede algumas décadas para situar o cenário de sua história, dizendo o narrador no início do livro que a trama se desenrola “no tempo do rei”, ou seja, entre 1808 a 1822. Manuel Antônio de Almeida recriou o que teria sido o centro do Rio naquela época. E juntamente com este cenário da época da corte Real o qual o autor não presenciou, pois nasceu em 1831, temos características dos costumes e modas narrados de uma forma não tanto aprofundada, mas que esboçam um retrato visível de certos “tipos humanos” apartir de uma imagem caricatural, como o barbeiro, a parteira e o meirinho que era um oficial de justiça da época. A descrição destas personagens é feita com pouca individualidade, onde o autor descreve a figura de um tipo generalizado que a personagem representa de exemplo temos “o barbeiro (que morava) defronte” à casa de Leonardo-Pataca sendo escolhido como padrinho pela sua mulher Maria e por sua Comadre por mera conveniência, logo, o filho de Pataca, Leonardo o “memorando” da história tem como padrinho um barbeiro casual como qualquer outro, desprovido de características próprias ou qualidades específicas, e talvez por isso o narrador tenha omitido o seu nome assim como diversas outras personagens caricaturais do livro, pois o que importa é o que a personagem faz na vida e não o que ela é, ou seja, tem-se uma narrativa de caráter físico, voltada para o exterior das personagens e não explicitando nem mergulhando nos movimentos psicológicos destas.

O leitor acompanhará as desventuras de Leonardo-Filho desde a sua concepção, originada apartir da cômica cena da “pisadela no pé direito” de Maria-da-Hortaliça e do “beliscão nas costas da mão esquerda” de Leonardo-Pataca; passando pelas travessuras de infância e pela “malandragem” da vida adulta. Permeando a saga de nosso anti-herói, posto que Leonardo não tem caráter de “bom moço” ou atos enaltecedores da virtude humana; encontramos descrições (não muito pormenorizadas, mas ricas em caracteres culturais) de festas religiosas e populares que expressam mais uma vez o estilo coloquial da obra. Quando Leonardo tinha nove anos de idade, passou em frente à porta de sua casa uma procissão, “a via-sacra do Bom Jesus”, e não se contentando em olhar, o garoto “misturou-se com a multidão” sem avisar ao seu padrinho. E curiosamente após termos Leonardo metido no meio de um ato religioso, o vemos em seguida numa casa de ciganos (família de dois meninos com quem Leonardo travara conhecimento) que apesar de também festejarem devoção a santos não são bem vistos na sociedade. O narrador fornece ao leitor uma visão preconceituosa ao dizer que junto aos emigrantes portugueses vieram também “a praga dos ciganos”, criticando o modo de vida deste tipo de gente chamando-a de “ociosa e vagabunda”; no entanto o narrador parece lembrar-se de narrar as travessuras do garoto de forma imparcial e termina por contar em bom pedaço de texto as características do “fado”, “essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte”, ocorrida na casa dos tais ciganos “ociosos”.

Como que para apregoar o caráter popular da história Manuel Antônio de Almeida cria a personagem da Comadre, madrinha de Leonardo, que é tida como a “papa-missas da cidade” por não perder uma missa, via-sacra ou procissão sequer. Sua “profissão” é a de parteira, e apesar do narrador chamá-la de “ingênua ou tola até certo ponto”, a personagem adquire importância relevante na história, e desconsiderando a personagem principal do Leonardo ela pode ser vista ao lado do major Vidigal, como a mais significante do livro, uma vez que não só ajudou ao Leonardo-Pataca a ser solto da prisão como inúmeras vezes intercedeu por Leonardo-Filho: na tentativa de afastar José Manuel de conquistar Luisinha, amor de Leonardo, ou até mesmo arranjando-lhe emprego de “servidor da ucharia real”. Por mais que Leonardo aprontasse “diabruras” ou fizesse malandragens de vadio, a Comadre sempre estava do seu lado de forma carinhosa e prestativa não o desamparando em nenhum momento. E para não desmerecer o Compadre deve-se dizer que ele também teve um papel importante para com Leonardo, acolhendo-o quando este fora abandonado pelos pais com poucos anos de vida, e educando de forma própria e acreditando cegamente que seu afilhado seria um grande homem, um clérigo na opinião dele, mas tristemente o padrinho não pode ver que rumo tomara na vida Leonardo que alçara ao posto de sargento contando muito mais com a ajuda de terceiros e com a “malandragem” do que com esforços próprios baseados nos ensinamentos adquiridos pela educação que o padrinho lhe dera.

Se o padrinho queria encaminhar Leonardo a uma vida digna e respeitável, temos em um sentido mais amplo o major Vidigal que tinha como “árdua tarefa” manter a segurança e a ordem pública. O autor caracteriza ao extremo esta personagem que era o “rei absoluto, o árbitro supremo”, onde a lei era exatamente aquilo que ele julgava como tal, podendo mandar e desmandar como bem entendesse. Se ele via um grupo de pessoas fazendo uma festinha colocava-se atento junto com seus granadeiros à espreita, esperando um motivo ínfimo ou motivo algum para prender alguém, como no episódio em que Leonardo, Vidinha e os primos dela estavam fazendo uma “patuscada” e derrepente chega o major prende Leonardo sem motivo aparente: “Ele não fez nem faz nada; mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede”. Para o major Vidigal o fato de Leonardo não “fazer nada”, ser um vadio, já é uma circunstancia suficiente para ele ser preso, e prende-o sem lhe dar o direito de se defender, pois se ele, o major, era a justiça em pessoa estava então decretado que o sujeito era culpado, sem chances de réplicas. O major Vidigal é a representação de um poder centralizado nas mãos de poucos e que aplica suas leis de forma arbitrária para manter a ordem, ordem esta que é relativa dependendo dos interesses do major, como podemos perceber no final do livro, onde o major após ter prendido Leonardo manda soltá-lo depois que uma cigana, antiga conhecida sua, lhe promete, ao pé do ouvido, algumas intimidades em troca da liberdade do malandro rapaz.

Manuel Antônio de Almeida constrói sua narrativa de forma cômica e entrelaçando diversos acontecimentos que por mais absurdos que possam parecer, é extremamente plausível imaginar que o autor possa ter se inspirado em fatos reais para contar sua história, assim como a personagem do major que de fato era uma figura real, Miguel Nunes Vidigal; dando ao enredo um caráter realista, contrariando um pouco as estéticas açucaradas do Romantismo, como se pode ver no delicado e gracioso enredo de “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado quase dez anos antes de Memórias, ou no complexo e também romântico livro de Flaubert, Madame Bovary, lançado na França três anos depois de ter saído o último fascículo de Memórias de um Sargento de Milícias em meados de 1853.

A discussão em torno do gênero é apenas mais um aperitivo da obra que é recheada de pontos para análise critica: tem-se a conseqüência da vinda da família real na formação da sociedade carioca da época, onde alguns possuíam emprego graças aos seus estudos em terreno português, enquanto uma maioria de desafortunados vagabundeava pelas ruas malcheirosas do Rio, levando a vida sempre com “jeitinho”; tem-se também a apresentação de personagens-tipo que representam não heróis ou deuses mitológicos, mas seres humanos comuns e com defeitos (muitos até) que não se enquadram em esquemas como o “mocinho” ou o “vilão”, no entanto mostra aos leitores homens e mulheres como todos os outros ao seu redor, de forma não-esquemática e sem as distorções do subjetivismo; enfim, a lista de elementos significativos para um estudo literário é longa, o que nos faz sentir um enorme pesar sobre a morte prematura do escritor Manuel Antônio de Almeida, deixando nós leitores e apreciadores de boas obras com um sentimento de enorme perda, pois infelizmente só temos “Memórias de um Sargento de Milícias”, além da peça “Dois Amores”, para nos transportar para cenários deliciosamente irreverentes, cômicos e naturais, e nos deixar familiarizados com personagens tão próximos de nossa realidade brasileira.

***(L.F.Rovi-2006)***

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de Um Sargento de Milícias. Ediouro: Rio de Janeiro, 30ªed. 1996.

CÂNDIDO, Antônio. Dialética da Malandragem. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1993.

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